Entre mares: refugiados “angolanos” em Itajaí/SC
Charles Raimundo
Mestre e doutorando do PPGAS UFSC, pesquisador do NUER
Este texto apresenta de forma sucinta uma experiência etnográfica, que trás reflexões sobre identidades processuais em diáspora. No referido processo a história/trajetória de famílias “angolanas”, em sua maioria ligada a indústria da pesca no litoral sul de Angola – Baía Farta/Benguela – traçam as rotas desse ensaio. Vale mencionar que sob a alcunha de “angolanos/as” encontram-se relações entre nacionalidades Cabo Verdianas, Angolanas, Portuguesas e Brasileiras.
Como num roteiro de cinema, essas famílias entram em barcos pesqueiros do patrão português e lançam-se por mares nunca navegados, rumo ao Brasil. Em sua ilíada localizada nas migrações contemporâneas (refugiados ambientais, econômicos, políticos, belicosos), atravessam o atlântico, e como me disseram, enquanto o patrão queria salvar seus barcos, eles fugiram para salvar a vida.
O cenário é o inicio da guerra civil angolana, 1976 – 2001 – nesse contexto encontramos a conversão das guerras coloniais, ou seja, por diferentes frentes de libertação do domínio português (Tali, 2001) e o momento de independência do regime colonial português, em que uma das facções recebe o governo das mãos portuguesas – MPLA, frente de viés marxista -, colocando outras frentes em disputa pelo poder – FLNA e UNITA.
Quanto aos “angolanos/as” residentes em Itajaí/SC, esse é um momento de ambiguidades. A fuga de Angola acontece na independência. Essa mesma data direciona sua celebração anual, a festa da independência de Angola. Em outras palavras, marca sua identidade e sua fuga. Ampliando o contexto, encontramos um Brasil com contradições nesse sentido. Em plena ditadura militar e sua caça aos comunistas, quer se aproximar de Angola independente, fortalecendo assim uma política externa que passa por África (Dávila, 2010).
No dia 05 de novembro de 1975, oitenta e quatro pessoas entre adultos e crianças, cruzaram o Atlântico, deslizando por águas onde outrora navios negreiros faziam suas rotas no contexto escravista. Cinco embarcações de pesca, levantaram âncoras após a invasão da UNITA, uma das frentes de libertação que disputavam o poder no pós-colônia. Em busca de “águas mais tranquilas”, esses personagens seguem para a Namíbia (05 dias) e em seguida para a margem de cá (19 dias), rumo a sua nova “casa”. Esses indivíduos deram início a uma nova forma de viver, com certeza, diversa a que estavam habituados. Por outras autoras já havia sido apontado que novas angolanidades compõem a foz do Itajaí (Paredes & Alencar, 2009), porém depois de ter realizado uma etnografia com esse grupo, acredito estarmos tratando, também, de novas afro-brasilidades e novas africanidades, menos marcadas pela diáspora forçada da escravidão, menos marcadas pelo pertencimento ao nacional, mas sim perpassada pela ideia de construção de uma nova África contemporânea.
Existe nessa perspectiva um processo de identidades de grupo e de pessoa (Mauss, 2003), formulada de forma processual. Identidades, pois tiveram de marcar, brigar em diferentes momentos de sua vivencia de Brasil, para conseguirem documentos que facilitassem seu transito por aqui, e para isto correram atrás de suas identidades “oficiais”, outras nem tanto, para no momento presente traçarem através de identificações e diferenças seu lugar na cidade. Para que tal fenômeno, o das identidades múltiplas e diferenciações fique plausível, utilizo como argumento as falas coletadas em campo e a teoria pesquisada, sublinhando aspectos desses personagens como necessidades adquiridas, trabalho, adaptação, moradia, cidade, identidades “oficiais”, o contexto da família na diáspora, auto declarações e conceitos combinados. Ideias que nos ajudarão a captar o momento vivido por “angolanos/as” na cidade de Itajaí e suas relações com esta nos últimos trinta anos.
Dentro deste propósito considero a memória como peça chave para entender o processo do qual me proponho a analisar. A construção dessa memória é perpassada por diferentes momentos e estímulos. A memória, encarada de forma coletiva, constitui-se na somatória das diferentes pessoas deste grupo, aproximando-se ao que Richard Price apresenta como percepção da memória/tempo, evocando a imagem de um velho acordeom, que se abre ou se fecha, encolhendo algumas coisas, aumentando outras e, neste processo, fazendo música (Price, 2000).
Aqui gostaria de atentar a pessoa inserida na cidade adotiva relacionando-se com os citadinos, sentimentos e instituições que envolvem em sua esfera trabalho, estudos e lazer. Desta forma, não podemos encarar o morador da cidade como solitário, no sentido de viver apenas consigo mesmo, mas articulado com um contexto de vida social circundante, onde de diferentes maneiras, conflituosas ou não, projeta-se no espaço publico e privado.
A operação dos estereótipos é outro ponto interessante revelada nessas falas, que apresentam angolanos/as assim como brasileiros/as de forma preconceituosa ou essencializada. Dentro da perspectiva de propagação, como uma onda no mar, trazemos experiências que vão se modificando conforme o tempo/espaço percorrido. Trazemos conosco, impresso em nossa pessoa uma série de marcas (não só físicas) que vem a ser significadas conforme a ocasião. A escola e o trabalho foram os primeiros espaços formais de coexistência entre brasileiros/as e angolanos/as em solo catarinense, e pela fala dos entrevistados, houve uma resistência inicial em aceitar esses jovens, crianças e adultos em seus quadros escolares e postos de trabalho exigindo deste coletivo angolano uma “corrida” por direitos junto a autoridades locais. Adaptar-se ao novo país, inserir-se na cultura local através do processo de escolarização, trabalho e o lugar da onde falam na cidade, aliado a um sentimento de perda, que gerava sentimentos contraditórios.
Para tanto, a criação de uma associação que viabilizasse e facilita-se uma melhor mobilidade e cidadania no Brasil, foi uma das estratégias de conseguirem direitos junto ao governo brasileiro e angolano.