ADD SOME TEXT THROUGH CUSTOMIZER
ADD SOME TEXT THROUGH CUSTOMIZER

RUY DUARTE DE CARVALHO

ruy-duarte-de-carvalho-1

 

Vida

 

Santarém, Portugal 1941 – Swakopmund, Namíbia 2010

 

Ruy Duarte de Carvalho está definitivamente ligado ao Deserto de Namibe, onde passou a infancia em Moçamedes e onde visitou por inúmeras vezes como viajante, antropólogo, poeta, cineasta, amigo e estudioso dos pastores do deserto. Filho de um caçador de elefantes, cresceu no Namibe onde trabalhou na pecuária e foi regente agrícola. Estudou e se formou em cinema em Londres e se doutorou em Antropologia Social e Etnologia na França em 1982. Lecionou em Luanda, Coimbra, São Paulo, Paris, Berckley e passou os últimos dias de sua vida em Swakopmund, Namíbia, onde veio a falecer. Está sepultado no Namibe, onde vive atualmente sua filha e onde recentemente foi inaugurada uma escola com o seu nome. Em 2010 foi homenageado no Festival Dokanema, em Maputo, onde foram exibidos os seus filmes, dentre eles “Nelisita”. Esta foto foi tirada durante este festival, quando fazia um depoimento público sobre sua participação na Luta pela Libertação de Angola, país que lhe concedeu desde 1975 a cidadania angolana.

 

 

Obras do autor

 

Poesia:

Chão de Oferta 1972

A Decisão da Idade 1976

Exercícios de Crueldade,Lisboa, “e Etc.”, 1978.

Sinais Misteriosos… Já se Vê…, Luanda/ Lisboa, UEA/ Edições 70, 1980

Ondula,Savana Branca, Luanda/ Lisboa, UEA/ Sá da Costa Editora, 1982

Lavra Paralela, Luanda, UEA, 1987

 Hábito da Terra, Luanda, UEA, 1988

Memória de Tanta Guerra, Lisboa, Editora Vega, 1992

Ordem de Esquecimento, Lisboa, Quetzal Editores, 1997

Lavra Reiterada, Luanda, Edições Nzila, 2000

Observação Directa, 2000

Lavra (poesia reunida 1972-2000) Cotovia , 2005

 

Ensaios, narrativas e ficção:  

O Camarada e a Câmara, cinema e antropologia para além do filme etnográfico, Luanda, INALD , 1980

Ana a Manda – os Filhos da Rede, Lisboa, IICT , 1989

A Câmara, a Escrita e a Coisa Dita – Fitas, Textos e Palestras, Luanda, INALD, 1997

Aviso à Navegação – olhar sucinto e preliminar sobre os pastores Kuvale, Luanda, INAL, 1997

Vou lá visitar pastores, Lisboa, Cotovia,1999

Os Papéis do Inglês, Lisboa, Cotovia, 2000

Os Kuvale na História, nas Guerras e nas Crises, Luanda, Edições Nzila -2002

Actas da Maianga Lisboa, Cotovia, 2003

As paisagens Propícias Lisboa, Cotovia, 2005

Desmedida– Luanda, São Paulo, São Francisco e volta (2007),

A Terceira Metade (2009)

 

Filmes:

Uma Festa para Viver 1976 -, 40′, p/b, 16mm, TPA

É a Vez da Voz do Povo 1976 – Angola 76, (série de 3 documentários, 100’, p/b, 16 mm, TPA

Faz Lá Coragem, Camarada 1976 -, 12O’, p/b, 16 mm, TPA- O Deserto e os Mucubais, 2O’, p/b, 16mm, TPA

Presente Angolano, Tempo Mumuíla 1979 (série de 10 documentários, cerca de 6 horas, p/b e cor, 16 mm, TPA)

O Balanço do Tempo na Cena de Angola 1982 -, 45′, cor, 16 mm, IAC

Nelisita, 1982 7O’, p/b, 16 mm, IAC

Videocarta para o meu irmão Antoninho 1986 –. 40′, cor, video, Maritimo futebol clube da Samba.

O Recado das Ilhas 1989 -, 90’, cor, 35 mm, Madragoa Filmes / Gemini Films

No Brasil foram editadas as seguintes obras:

Os Papéis do Inglês(Companhia das Letras)

Desmedida (Língua Geral)

Fui lá Visitar Pastores ( Gryphus)

 

Capas de alguns de seus livros:

 

ruy-duarte-de-carvalho-3

 

Para homenagear este Autor, escolhemos reproduzir aqui alguns artigos escritos por ele e já publicados, comentários na imprensa que refletem, para nós, a atualidade e importância da sua obra. Esta divulgação deve servir exclusivamente a atividades didático-pedagógicas e não deve ser divulgada sem citar as fontes originais.

 

Agradecemos, portanto, as fontes e autores aqui citados, em especial, ao site Buala (www.buala.org), que conseguiu reunir importante acervo sobre Ruy Duarte de Carvalho.

 

Com a palavra,

RUY DUARTE DE CARVALHO e seus comentaristas:

 

Tempo de ouvir o “outro” existe, antes que haja só o outro…Ou pré-manifesto neo-animista

 

Intervenção na Conferência da Gulbenkian a 27 /10/2008 cujo título geral era: Podemos viver sem o outro? e foi publicada no livro com o mesmo título, vários autores, pela Tinta da China/Fundação Calouste Gulbenkian, 2008 e reproduzido no site Buala, que agradecemos.

 

 

Como se o mundo não tivesse leste, imagem de Ivone Ralha…… fazendo eu parte, cívica, emotiva e intelectualmente, da categoria geral do OUTRO em relação à Europa, também por outro lado a questão do OUTRO, e dadas as condições fenotípicas e de origem que me assistem, tem feito sempre parte da minha experiência existencial e pessoal dentro do próprio contexto, africano e angolano, em que venho exercendo a vida e ofício……  isso me tem levado, para poder ver se consigo entender o mundo e entender-me nele e com ele, a identificar e a reconhecer uma multiplicidade de OUTROS…….. no presente caso retive apenas três categorias de OUTRO, que são as que me parecem capazes de permitir-me  tentar expor o que poderei ter para dizer aqui…

 

…considerarei aqui como OUTRO, sublinhado ou em itálico, os indivíduos e os grupos, muitos deles já nascidos ou constituídos no territórios das ex-metrópoles a partir de genitores ex-colonizados ou provenientes de ex-colónias e que hoje integram, de pleno direito estatutário, as populações nacionais dessas mesmas ex-metrópoles embora reconhecidos como diferentes da massa dominante através de traços fenotípicos ou culturais… como ‘OUTRO’, entre apóstrofos, o ex-colonizado ocidentalizado com que o ocidente lida nos contextos das ex-colónias… e finalmente como “OUTRO”, entre aspas, aquele sujeito marcado por traços afetos a populações que, integradas embora como nacionais em estados-nação que hoje existem a partir de contornos ex-coloniais, mantêm usos, praticas e comportamentos mais afins a quadros pré-coloniais do que pós-coloniais ou mais ou menos ocidentalizados… quer dizer, subsiste  aí, em muitos casos, um “outro” não, ou ainda não completamente,  ocidentalizado... o qual no decurso de um presente que é também o nosso, continua a ser objeto, evidentemente, de uma pressão ocidentalizante que acaba por ser a marca dominante do seu comum dia a dia de pessoas que à luz dos proclamados direitos do homem valem tanto como quaisquer outras pessoas no mundo…

 

…só que a sua situação e a sua condição se revelam tão diferenciadas nos contextos nacionais em que subsistem, que da mesma maneira que aqui na Europa, onde estou agora a falar, as ex-metrópoles parece não saberem muito bem às vezes  o que fazer com o outro,  em itálico, que vem ao mundo em território seu, também o ‘outro’, entre apóstrofos, que gere os territórios das ex-colónias, parece também por seu lado ter dificuldade em saber o que fazer com esse “outro”, plenamente entre aspas…

 

… este será, em meu entender,  um dos problemas, um dos impasses colocados ao mundo de hoje pelo processo histórico que veio a configurá-lo e continua a dinamizá-lo tal como ele hoje existe, e é evidente que estou a falar da expansão ocidental como ela se tem desenvolvido e mantém em curso…

 

… outros problemas porém, muitos dos quais, de novo em meu entender, acabam por constituir-se ou configurar-se como impasses, assistem ao mundo de hoje na decorrência, precisamente, e insisto, da expansão ocidental e do lugar que a matriz ocidental  de civilização acabou por impor ao mundo inteiro…  de um modo tal, aliás, que as evidências de uma situação assim não deixam de suceder-se e impor-se cada vez com mais premência, como está acontecendo exatamente neste preciso momento com a crise financeira que o mundo está enfrentando… parece que o mundo ocidental, e ocidentalizado, não pode decididamente ignorar mais a necessidade urgente  de fazer alguma de inédito por si mesmo… do que nestas últimas semanas tenho insistentemente ouvido a tal respeito, retenho apenas que todos as instituições e os governos ocidentais chamados a pronunciar-se sobre a crise em presença se viram perante a necessidade de afirmar que as suas atuais preocupações dominantes com a finança não devem nem podem ofuscar, nem preterir, nem retardar a preocupação  vital e global com a saúde, a preservação e salvação ambiental do planeta… e mais ainda que os develloping countries, que não são exatamente aqueles que mais imediatamente são convocados para encarar a crise do mundo geral, ocidental e ocidentalizado, exigem ser ouvidos quanto antes…

 

 

Desmedida, imagem de Ivone Ralha… e é aqui que me ocorre formular a seguinte pergunta : sendo que o mundo global reconhece ter de fazer imperativamente alguma coisa por si mesmo em relação à sorte global do globo, sendo que as vozes emergentes terão obrigatoriamente de ser ouvidas, não seria talvez então também já agora altura de atender ao que toda a espécie de vozes que o mundo ainda comporta poderá ter eventualmente a dizer no interesse talvez de todos? … mesmo as vozes daquele “outro” que eu aqui identifico envolvido entre cerradas aspas ?…que podemos viver sem ele, recorrendo ao mote deste encontro, talvez possamos, até porque ele vai inexoravelmente desaparecer, mas não seria pertinente, para o debate e para a sorte do mundo, tentar ou ensaiar ouvi-lo ainda, enquanto existe ?…

 

… estou a sair da Namíbia onde de há cinco meses a esta parte tenho usufruído do luxo de poder dedicar-me exclusivamente a um livro que estou escrevendo … é um livro de meia-ficção, na sequência de outros em que tenho tentado essa modalidade, e cuja ação se desenvolve em grande parte no sudoeste de Angola e no noroeste da Namíbia, onde subsistem precisamente populações que eu posso identificar com o tal OUTRO absoluto que tenho vindo a referir…..  quando recebi lá o convite para participar neste encontro acedi sem grande hesitação porque em meu entender me via colocado uma vez mais numa situação em que a realidade vem ao encontro da ficção e poderia de alguma forma integrar o estar agora aqui no programa que me tinha anteriormente imposto e via assim interrompido…  na trama do enredo que tenho vindo tratando nesse livro em curso, dois dos seus personagens concebem a certa altura poder ter para propor ao mundo, a partir das cosmologias e das cosmogonias locais, australo-africanas, para o caso, a figura de um herói tutelar perfeitamente adequado às preocupações, às aflições e às urgências que parecem impor ao mundo em que vivemos uma resposta pronta, eficaz, adequada e no entanto bem difícil de conjeturar ou conceber porque essas preocupações, aflições e urgências decorrem afinal de pressupostos e de dinâmicas que o mundo moderno, ao mesmo tempo, parece pouco disposto a por em causa…

 

… o herói em questão dá pelo nome de Nambalisita, e é figura de grande estatura no imaginário e na expressões das populações da região a que me referi e que também costumo identificar como mancha clânica pastoril do sudoeste da África, constituída sobretudo por populações herero, ovambo e nyaneka … Nambalisita, com quem eu lido de muito perto desde que há mais de um quarto de século rodei um filme chamado Nelisita, é aquele que se gerou a si mesmo… ele nasce de um ovo auto-fecundado…e contra o mal e os maus e os desconcertos do mundo, Nambalisita faz  apelo aos animais todos da criação, seus irmãos, os seus rapazes, e até mesmo à criação inteira…

 

…só que, sabem os personagens do meu livro muito bem, não será fácil propor um herói desses ao mundo ocidental e ocidentalizado que detém as rédeas do mundo e dos seus destinos…. Nambalisita emerge de uma matriz  cosmogónica e cosmológica que não é a que conferiu ao ocidente o poder para vir a ocupar o lugar que hoje ocupa no mundo globalizado… enquanto para nós aqui, nesta borda da África, refere um desses personagens,  para a nossa maneira de ver as coisas  a tudo quanto é vivo assiste uma alma igual que afinal cada ser vivo, seja ele pessoa, hiena ou lagartixa,  exprime, vivendo, conforme o corpo de que dispõe, para os brancos e para aqueles que os brancos converteram, domesticaram à maneira deles, é tão só o corpo que identifica o homem enquanto  animal, porque o que o que constitui como homem é ter uma alma de que o resto da criação não dispõe… é essa a expressão da razão, da arrogância e da soberba invasora… ela coloca o homem fora da condição biológica como se ele estivesse a salvo de tal baixeza e partilhasse com deus, só ele e não o resto da criação toda, da condição divina… o homem no centro do universo e a servir de medida a tudo, até a deus… antropoformização de tudo, mesmo de deus… o  divino configurado como um  deus branco de barbas brancas… tudo domesticado segundo um modelo que previa até o selvagem que nós seríamos aqui, um meio-humano que só tem acesso ao patamar da humanidade, só é verdadeiramente humano, quando aferido em relação não à medida do resto da criação no mundo, mas à da maneira de certos  homens que têm uma versão do mundo e da vida que  impõem aos outros, e armas, meios e dispositivos para tirar benefício  disso… o universo feito para uso deles e, em nome de deus e da civilização, autorizados a converter entretanto o mundo todo, divino, humano, animado e inanimado, às suas maneiras, à sua maneira… uma maneira, a do paradigma que cobriu a expansão ocidental, portanto, que não pecava afinal por sobreestimar as pessoas… não as colocava mas é tão alto quanto lhes cabe… porque mesmo depois de ter chegado o tempo das descolonizações e da entrega  das soberanias  locais aos ocidentalizados que provinham das populações indígenas anteriormente encontradas, o que de facto aconteceu foi legar-lhes, sem nação ou arranjo pluri-nacional, uma herança envenenada de estados modernos definidos por fronteiras políticas coloniais historicamente recentes e alheias aos diferentes e muitas vezes distintos grupos ou sociedades envolvidos ou retalhados… e exigiu-se-lhes de pronto o desempenho de estados-nação num mundo universal onde as regionalides dominantes em vias de consumação no quadro político das globalidades operam, ao mesmo tempo, no sentido de se desembaraçarem dessa figura política de estado-nação, como está acontecendo por exemplo com a Comunidade Europeia…

 

…só uma grande volta paradigmática, portanto, acrescenta então outro personagem plenamente ao corrente das terminologias ocidentais…paradigmática e verdadeiramente pragmática… mas que não contemplasse esses pragmatismos oportunistas e cínicos em que a categoria do necessário e do vantajoso substituiu completamente a do possível e consistem em não conseguir encarar nada sem fazer logo as contas do beneficio parcial que a  situação inspira e não olhar para o mundo senão em função disso…

 

…da mesma maneira que seria necessário ter em conta  que a uma tal volta paradigmática não bastaria admitir que o “OUTRO” pudesse ser capaz de ver os fenómenos e o  mundo e avaliá-los e equacioná-los e aproveitar-se deles segundo as suas razões e os seus interesses, como faz o ocidental…. isso não é volta paradigmática nenhuma, é uma questão de bom senso…volta paradigmática será admitir, e reconhecer, que alguém, mesmo sendo o “OUTRO”, pensando de uma maneira radicalmente diferente, possa conseguir ver certas coisas e certos fenómenos de uma maneira melhor e mais adequada à efetiva configuração do mundo, e que os ocidentais e os ocidentalizados,  nesse caso,  é que teriam a aprender com o “OUTRO”, e que isso acabaria por convir a todos… uma volta, assim, que permitisse, perante os impasses que a expansão e a imposição  do paradigma  ocidental produz no mundo inteiro – inclusive  nessas partes do mundo de onde ele saiu porque estão agora a contas com o troco, que são os filhos dos ex-colonizados, que estão a nascer lá – , permitisse ao próprio saber ocidental achar ser tempo de prestar uma atenção diferente aos chamados discursos arcaicos, dar-se a uma contra-descoberta, por assim dizer, daqueles que antes foram descobertos pelas caravelas… o que talvez, na linguagem dos especialistas, pudesse ser formulado dizendo que seria tempo de ouvir o ‘outro’ enquanto o “outro” ainda existe, antes que haja só o outro, o tal imprevisível mestiço universal que o tempo se encarregará de produzir…

 

… é isto que os meus personagens dizem no livro que estou a escrever e interrompi para poder estar agora aqui… esse livro virá a esta à disposição de todos dentro de algum tempo, e só vou deter-me agora aqui num dos aspectos que enunciei : ouvir ainda esse “OUTRO” enquanto ele ainda existe… ainda existe mesmo ?…

 

….existe ainda sim, em certas partes do mundo como aquela de onde estou a sair e me mobiliza de há décadas a esta parte a atenção total……… e se me empenho agora aqui em fazer campanha  para que esse “outro” seja ainda tido em conta e ouvido não é tanto porque entenda que devemos ir todos escutar atentamente o que os mais-velhos de lá poderão ter ainda para dizer e para nos ensinar…….. a minha experiência de antropólogo leva-me a encarar com a maior prudência o que os mais velhos de hoje poderão vir a dizer aos que os abordam para interrogá-los……… dizem exatamente aquilo que muito pragmaticamente entendem que lhes convém que os outros ouçam, como acontece seja com quem for em qualquer parte do mundo……… será antes imperativo, em meu entender, ter essas populações em conta porque elas ainda hoje, neste preciso momento, continuam a ser alvo de uma violentação, de uma lesão, que lhes é imposta pela expansão ocidental ainda em curso e acionada tanto por ocidentais estrangeiros como por ocidentalizados compatriotas seus…….

….não estou aqui mandatado por ninguém para falar em nome seja de quem for……. falo por mim… não defendo nenhuma causa, assumo uma questão que diz respeito à minha própria razão de existir…  mas não posso deixar de referir, quando sou chamado a pronunciar-me acerca de questões que se reportam ao lugar do OUTRO, de que forma me aflige, para não dizer de outra maneira, ver populações que eram assediadas antes por agentes da ocidentalização impondo-lhes assumir os sinais e as maneiras do modelo ocidental e do progresso tecnológico e que são assediadas hoje pelos mesmos agentes ou equivalentes que agora pretendem impor-lhes a preservação dos sinais e as maneiras dos seus modelos arcaicos e não-ocidentais porque isso passou a insinuar-se como o mais rentável tanto para uns como para os outros desde que se deixem integrar em menus de programas turísticos e se deixem representar como expressões de um exótico ecológico e redentor ao lado de outras atrações bizarras como manadas de zebras, de elefantes e de gazelas…

 

….não me perguntem que soluções proponho para problemas desta ordem…não sou nem político, nem profeta, nem militante seja do que for… mas terão certamente o direito de perguntar-me aonde quero chegar se não tenho propostas para salvar o “OUTRO” e todavia ainda assim convido a que esse outro seja tido em consideração e ouvido embora também não proponha que vão lá ouvir o que os mais-velhos poderão ter para ensinar… que tipo de ação ou de atitude me leva ainda assim a pretender reter-vos a atenção ?…

 

…o que eu proponho é bem simples e ao alcance de interessados e de profissionais susceptíveis de ser congregados à volta de questões desta natureza… não é ter um caminho a propor… é antes ter algumas idéias para uma eventual hipótese de poder vir a ajudar a encontrar maneira de achar um caminho… admitir uma possível perturbação, reconfiguração ou mesmo substituição prospectiva, pragmática e programática do paradigma cosmogónico, cognitivo, institucional e político ocidental / global / universal, recorrendo a outros quadros paradigmáticos… não se trataria de introduzir qualquer espécie de remedeio, de compensação ou de arranjo nos terrenos do paradigma humanista, mas antes de tentar configurar, ou  reconfigurar, um novo paradigma… no âmbito desta proposta a hipótese apenas seria encarada a partir e através da identificação, da convocação e da possível integração de dados provenientes de outros quadros de concepção, cognição, representação e ação afins a géneses  africanas e outras…… não se trataria seguramente de tentar suster a mudança mas de convocar outros saberes, outras visões, outras maneiras, outras hipóteses de mudança para além da que é imposta pelo programa ocidental… nem se trataria de  visar a substituição de um paradigma por outro ou de propor um melhor que o outro… mas alvitrar apenas alguma ação que soubesse extrair do que se sabe, e de todos os meios e expressões, alguma maneira melhor de lidar com toda a ordem de impasses sem estar a criar sempre novos impasses civilizacionais, acrescentando novos impasses a toda a ordem deles…

 

 

Terceira metade, imagem de Ivone Ralha…voltando à proposta,  pois : não será eventualmente  possível  encarar a hipótese de poder extrair de outros quadros paradigmáticos que não o do humanismo ocidental algo que venha ao encontro do próprio interesse global irreversivelmente marcado e conduzido pelo modelo que o ocidente impôs ao mundo inteiro e continua em expansão ?…

… mas então se o meu programa não passa por ir muito voluntariosa, folclórica e militantemente ouvir o que os mais-velhos poderão ter para ensinar, passará por quê então ? …poderá talvez passar muito ortodoxa e academicamente, e será esse o meu sucinto e singelo e discreto programa, por ir ver o que a própria expansão ocidental terá produzido como registo sobre o “outro”… uma releitura, uma revisita, portanto, daquilo que existe escrito… mas não uma releitura crítica clássica… procurando antes tentar descortinar e extrair o que poderá estar por detrás dos documentos etnográficos que foram utilizados, se existirem, ou dos textos produzidos sem que os seus autores tivesses em conta a hipótese de poder existir qualquer outro paradigma susceptível de merecer alguma consideração… uma releitura, portanto, que ensaiasse agora outra perspectiva, uma perspectiva, precisamente, que tivesse em conta outras maneiras de o homem ver a sua relação com o resto da criação, que conferisse, assim, uma importância e uma pertinência diferentes a paradigmas outros que não o paradigma humanista ocidental que se impôs, dominou, e impera a partir daí em exclusividade… que tivesse até em conta que esta seria, talvez, uma oportunidade inovadora garantida aos intelectuais ocidentalizados,  outros  e ‘outros’, saídos tanto do campo do ‘outro’ como do do outro, e chamados sempre, sem alternativa, a situar a sua afirmação e o seu desempenho nos terrenos e nas arenas do exercício dos saberes e dos poderes de matriz ocidental……… poderiam assim talvez  finalmente intervir de uma maneira que lhes evitasse ceder ao folclore de fantasias autenticistas ou renascentistas e a coloboracionismos étnico-turísticos e nos abrisse enfim uma via para reivindicar para nós mesmos, também, o direito à exigência… há muito tempo que me atrevo a dizer que a intelectualidade científica dominante só nos respeitará mesmo quando se vir obrigada a incorporar  na ciência global alguma coisa que saia de uma matriz  inequivocamente nossa…

 

….o programa que eu então me atreveria a sugerir aqui, sem saber muito bem a quem propô-lo, seria o de encarar uma ação que partisse de imediato para uma releitura geral de tudo quanto está registado sobre o saber do Outro, sobre saberes Outros, à luz da hipótese de poder admitir a existência e a eventual pertinência de paradigmas outros para aferir a relação das pessoas com o resto da criação, sem deixar também, logo à partida, de ter igualmente em conta todas as ofensivas anti-humanistas que o próprio paradigma humanista terá gerado ao longo da sua própria história e o que estará, está de facto, entretanto neste momento a ser feito em relação ao mesmo objetivo ainda que formulado de outra maneira…

 

…um programa, portanto, que viesse  ao encontro das preocupações, dos problemas, dos impasses do mundo atual mas que visasse muito para além das démarches salvacionistas e socorristas das militâncias que vemos em curso e afinal não conseguem pôr sistema nenhum, por mais lesivo que ele se tenha já revelado, em causa… que visasse antes uma volta tão absoluta na maneira de olhar para o mundo que ela viesse a constituir um salto quântico, uma mutação, um clinamen capaz de inspirar um quadro de  relações do homem com o resto da criação e com o mundo em geral  muito diferentes daquelas que o programa humanista desenhou para o futuro do mundo, a ponto de lhe estar agora a perturbar o presente de uma maneira que assusta a todos…  que reapontasse a práticas diferentes que até talvez acabassem por convir a todos, mesmo àqueles que só querem é tirar proveito do domínio de tudo…  um programa, enfim, que quanto mais não fosse criasse  a possibilidade de autorizar que alguém pudesse ensaiar,  experimentar, tentar, ver o que poderá talvez esclarecer-se dentro do que é imediatamente possível averiguar sem fazer muito barulho nem gastar muito dinheiro… permitisse tão-só talvez, sei lá, colocar alguns estudiosos a rever ao menos tudo o que está fixado, recolhido, escrito sobre as culturas outras… novas leitura que permitissem novas extrações a partir dos mesmos materiais… não haverá nada desprezado antes mas a extrair agora do paradigma animista, por exemplo, conforme as novas visões, as novas questões e os novos interesses que se impõem neste momento ao mundo ?… talvez assim os personagens do livro que ando escrevendo encontrassem então terreno propício para propor o seu herói tutelar, esse Nambalisita herói ecológico e da alma comum que é homem e herói fora da condição humanista e de uma genealogia divina que até agora só foi dizendo respeito aos homens de certas cores e de certa cultura e lhes foi conferindo autoridade e legitimidade para irem controlando e regulando tudo, a criação inteira, incluindo os homens de outras cores…

 

….e talvez  eu viesse então finalmente a encontrar fundamentos para formular em definitivo aquilo que ando a visar e a prometer há muito : um manifesto neo-animista proposto ao mundo inteiro como uma das vias da tal volta paradigmática e pragmática capaz de conferir lugar e sentido a todas as existências, divinas, biológicas e minerais até…

 

Ruy Duarte de Carvalho, junho de 2011.

 

 

Escritos sobre o Cinema Etnográfico:

 

Artigo publicado no Site Buala (www.buala.org), dirigido por Marta Lança:

 

Da tradição oral à cópia standard, a experiência de Nelisita

 

Sabemos que poderá parecer sacrílego o que vamos dizer a seguir, mas estamos cientes de que qualquer filme angolano, partindo de elementos culturais muito diferentes daqueles que normalmente alimentam os mercados do cinema, de uma maneira geral afectos a configurações sociais mais ou menos próximas de quadros ocidentalizados, tem que se haver com problemas muito específicos de leitura, da ordem pelo menos dos que ocorrem com outras cinematografias regionalizadas, africanas ou não. Se não vemos nenhuma vantagem em fazer filmes de difícil leitura, também não nos parece legítimo sacrificar dados culturais autonomamente existentes e viáveis nos seus contextos de origem a uma interpretação ou explicação etnocêntricas. Se em Nelisita se mata um boi por asfixia (planos 145 a 148), não nos sentimos minimamente obrigados a esclarecer que, naquelas circunstâncias, se procede assim — isso é evidente na projecção — nem tão pouco o porquê de uma tal prática.

 

 

Para os Mumuílas da estória, exótico seria matar o boi de outra forma. E ninguém se sente obrigado, num filme europeu, por exemplo, a explicar por que se mata o boi por punção. Desde que para o desenvolvimento da narrativa fílmica o importante seja a morte do boi, e não a forma como ele é morto, não vemos por que haveríamos de nos deter neste segundo aspecto.

 

Tudo quanto acabamos de dizer pretende sublinhar que o cinema que temos feito quer-se antes do mais cinema tal qual e de forma alguma cinema etnográfico. O cinema etnográfico tem a sua oportunidade, o seu lugar, o direito de recorrer a tudo quanto o define, e mesmo em Angola chegará o tempo em que ele assumirá a posição e o papel interventivo que lhe cabem. Achamos, por outro lado, que se nos desviarmos da discussão sobre qual dos modos deve impor a forma, o do cinema ou o da antropologia, e atendermos ao facto de que estamos debatendo um meio de participação e esclarecimento que utiliza determinado material humano através de processos cinematográficos, chegaremos sem dúvida à conclusão de que interessa obter um produto que corresponda à especificidade do contexto em que se insere. O facto de não se deter objectivamente na fixação de determinados comportamentos, ou de não se apoiar num discurso explicativo, não impede que ele utilize, como material fílmico, configurações que comportam elementos culturais muito diferenciados daqueles que normalmente alimentam os mercados de cinema. Que ele imponha assim um trabalho de terreno com características comuns ao exercício da antropologia, que ele exija um apetrechamento intelectual que terá que recorrer às fontes de conhecimento dispensadas pela antropologia e, finalmente, que se proponha como informação que alarga o conhecimento antropológico sobre a sociedade filmada, são dados que apenas vêm confirmar o nosso ponto de vista.

 

Que se depara perante os Mumuílas? Uma população angolana face a problemas a que uma determinada configuração cultural confere uma correspondente caracterização regional dentro da realidade geral do país, realidade essa que, como também já se disse, impõe o exercício de um cinema fortemente adjectivo pela actualidade e, logo assim, imperativamente actuante. O cinema retira a sua especificidade como via de expressão do facto de fornecer imagens que estabelecem uma ideia, ou a seguem, ou a desenvolvem, ou a ilustram. Não é possível em cinema dizer simplesmente — homem — como em poesia, por exemplo. É preciso mostrar o homem. Em cinema tudo vem adjectivado pela multiplicidade de sinais que constituem o fotograma. Acresce que as condições infra-estruturais do cinema angolano nos impõem a utilização de décors naturais e de material fílmico recolhido mais ou menos directamente da realidade vigente, social, económica, cultural e política. Esta circunstância, que poderia ser considerada como uma limitação, pode outrossim vir ao encontro das exigências do cineasta para quem o cinema constitui o terreno da sua actividade cívica num contexto nacional como é o de Angola. É do cinema, insistimos, que ele retira o salário que lhe permite viver integrado numa sociedade que as circunstâncias colocaram numa fase de “reconstrução nacional” e onde o maior esforço deve ser canalizado para a “resolução dos problemas do povo”, como refere um slogan político que não pode, de facto, e nas suas intenções, sofrer contestação em si mesmo, para além das críticas que possam merecer certas práticas desconcertantes que se apoiam em palavras de ordem deste tipo. O povo angolano, com a sua realidade e os seus problemas, pode assim, facilmente e sem reservas, constituir-se como o material que lhe interessa praticar enquanto Angolano a quem cabe fazer filmes e aos quais ele próprio exige a capacidade de se constituírem como forma de intervenção posta ao serviço do seu objecto de trabalho: o próprio povo que se deixa filmar.

Ao praticar um tal cinema o cineasta terá em vista, logo à partida, fornecer materiais que através da sua posterior divulgação possam informar, apoiar ou influenciar um esforço de que resulte minimizado o fenómeno das roturas e das violências culturais e sociais. O respeito pelas culturas nacionais não vai, muitas vezes e infelizmente, além da preservação e do culto de sobrevivências mais ou menos cristalizadas que apenas apreendem e têm em conta o que constitui a sua substância exterior e mais evidente. Ora o recurso à antropologia terá assim o papel de garantir um suporte significante ao material fílmico de forma a não iludir o significado do mostrável/mostrado: a dimensão do gesto, a dinâmica do tempo, a identidade do espaço.

 

Posição possível a partir da perspectiva exposta: Procurar fazer filmes que se constituam como peças adequadas à realidade angolana, tendo simultaneamente em conta os interesses de quem deixa filmar, de quem fornece os meios para que se possa filmar, de quem consome o cinema e de quem filma, tudo isto sem perder de vista uma outra exigência: que sejam filmes cinematograficamente válidos. Porque se assim não for vale mais a pena, com vantagens para todos, que o cineasta em questão invista o seu esforço em qualquer outra actividade útil, eficaz, interessante e correcta. A maioria dos Estados africanos, na qual se situa Angola, constitui entidades políticas em que se verifica uma grande diversidade de culturas nacionais. Coexistem dentro do seu território várias “exnações” que preservam com maior ou menor grau de evidência os sinais da sua especificidade cultural e atestam estados muito diferenciados dos desenvolvimentos das forças produtivas, relações sociais de produção e reprodução, etc. A antropologia tenderá assim a fazer-se reconhecer aí como um instrumento indispensável à compreensão dos problemas humanos, à análise das situações que os constituem e à aplicação das soluções que os ultrapassem.

 

 

O cinema em Angola, por imperativos de capacidade e de opção, ocupa-se e decorre da realidade nacional. Ao pretender tratar com seriedade os materiais que aborda, o cineasta será levado a procurar junto da antropologia o apoio que esta pode dispensar-lhe enquanto modalidade de conhecimento e método de inquérito e de análise. A antropologia fornecerá um suporte significante aos elementos fílmicos que o ocupam, sem o qual as imagens e o som apenas aflorarão, no melhor dos casos, ou iludirão, o que é mais comum, o significado do que é proposto: a dimensão dos gestos, a marca das atitudes, a dinâmica do tempo, a identidade do espaço.

 

Angola é um país do Terceiro Mundo. Em relação à antropologia clássica situa-se francamente no hemisfério do observado. Que revolução, porém, estará em curso para a própria antropologia quando o observado se transforma em observador e, dificuldade teórica maior em relação ao ser e ao modo da disciplina, se observa a si mesmo? Que acontece quando o observado assume a palavra? Talvez ocorra aí a oportunidade de ver a antropologia aproximar-se do cinema para beneficiar, por sua vez, dos recursos e do método cinematográficos. Recusamos entretanto, no contexto de Angola, a hipótese do filme etnográfico. Colocamo-nos assim ao lado da grande maioria dos cineastas africanos, embora não exactamente pelas mesmas razões.

Não partilhamos a marcada antipatia que a antropologia lhes merece e que está talvez na base da sua atitude de recusa. Entendemos apenas que Angola não dispõe de recursos cinematográficos, técnicos e humanos, suficientes para encarar como imediatamente viável o emprego do seu potencial produtivo na realização de trabalhos cuja preocupação maior é de aliar o rigor antropológico à expressão cinematográfica.

 

Angola pode produzir filmes que lhe permitam situar-se perante a sua realidade, em termos de cinema, com uma oportunidade e uma segurança suficientes para assegurar ao tratamento dos problemas humanos o respeito pela globalidade das implicações que os informam. Proporíamos assim a hipótese de uma prática cinematográfica e antropológica que, aplicada a Angola, retirasse o benefício da sua interacção sem incorrer na fatalidade do filme etnográfico. O cinema recorreria à antropologia, esta recorreria ao cinema e estabelecer-se-ia entre ambos um debate que visasse um equilíbrio de objectivos e de funções.

 

E é assim que, retomando as considerações atrás enunciadas sobre os interesses implicados na produção de um filme, e acrescentando-lhes as que acabamos de produzir, chegaríamos enfim a uma nova fórmula, síntese final da nossa opinião: Objectivo teórico global para o cinema angolano: produzir filmes cientificamente correctos, socialmente operantes, cinematograficamente válidos, eticamente honestos e publicamente viáveis.

 

A questão, pensava eu ao deixar Manchester numa manhã de doce Outono e escassa chuva, talvez continue a situar-se, e esteja condenada a situar-se sempre, no exacto campo de uma dificuldade fundamental e antiga: assegurar para um produto que busca a sua especificidade e a sua legitimidade na natureza científica do discurso que utiliza, ou visa utilizar, uma audiência que o consuma de forma a justificar e a garantir-lhe a sua reprodução. Que tal produto existe, quem duvida? As amostras que o revelam e o exibem multiplicam-se pelo mundo, as universidades adoptam-no e os circuitos comerciais, sobretudo através do mercado televisivo, não descuram indícios de procura que a troco de determinadas fórmulas de apresentação justificam a sua distribuição. Mas o drama subsiste.

 

O seu consumo é precário. Nunca a divulgação da ciência visou o grande público, é bem de ver, e quando o tenta, e consegue, pela via escrita, o que produz são textos que alcançam a sua viabilidade massiva precisamente porque atendem àquilo que o consumo massivo lhes pede: a satisfação de curiosidades e de informações comuns e bastantes às exigências, às necessidades e às capacidades de um público tão quantitativamente expressivo quanto possível. A questão que se põe, portanto, é esta: estará, desde sempre e por definição, o filme etnográfico condenado a não poder existir fora dos parâmetros de facilidade e banalização que afinal lhe garantem um público? Eu estou a falar do filme etnográfico acabado e pronto para projecção pública, sem a qual não tem acesso à república do “cinema”, e não, evidentemente, da footage registada e utilizada como material de pesquisa, nem dos resultados de uma organização desse mesmo registo para exposição dos resultados ou apoio ao ensino em círculos especializados; mais ou menos universitários. Estou a falar daquele artigo de consumo que atesta a profissionalidade de qualquer tipo de cinema e que, para além de tempo e de energia, precisa de dinheiro para ser feito, de estruturas de produção que tenham em conta a qualidade, técnica e estética, do produto final, e de estruturas de distribuição que o projectem enquanto objecto sujeito às dinâmicas da competição. Sem isso não há filme etnográfico, pura e simplesmente porque não há filme. Em Manchester, neste Festival Internacional do Filme Etnográfico, uma leitura assim estava tornada óbvia. A suportá-lo e omnipresente, achava-se Granada Television e o seu programa Desappearing World.

 

Desappearing World… Aqui se iniciam as interrogações, se inaugura a questão … Título de uma série, constitui certamente o primeiro gesto de sedução destinado a cativar um público cuja resposta possa garantir a viabilidade de um projecto capaz de abrir um lugar e uma oportunidade aos profissionais de cinema e aos antropólogos a quem se deve essa categoria cinematográfica que dá pelo nome de filme etnográfico (de tão inequívocos méritos na história do cinema, aliás, que seria injusto não olhar por ela). Não comporta a expressão Desappearing World, porém e desde logo, uma atitude ética e teórica que a reflexão moral e política, a consciência e o debate antropológicos pareciam ter de há muito ultrapassado, pela mão também, talvez importe sublinhar aqui, de Gluckman ele mesmo e da própria escola de Manchester? Assim, o que pode servir comercialmente pode não convir à identificação pública de uma disciplina ou de uma ciência, ou iludir mesmo o seu posicionamento teórico mais dinâmico e adequado ao estatuto geral das ciências. Para quantos  antropólogos activos e determinantes, o mundo que constitui o seu objecto de observação se lhes apresenta como um mundo em desaparecimento?

 

Que etnocentrismo, que imobilismo prevaleceria ainda nas fileiras da sua ciência que lhes impedisse a constatação basilar de que os processos que testemunham e analisam nos seus terrenos de pesquisa não são sinais de um mundo que desaparece, mas sim de um mundo que se transforma, de um mundo que emerge, carga positiva, de um Changing World? Estaria essa tribo de homens brancos, meio calvos e grisalhos, e de mulheres indecisas entre os atributos de uma elegância clássica e aqueles que insinuam uma funcionalidade de terreno, disposta a ser encarada como uma elite de zeladores do passado, de sobrevivências culturais, guardiães de uma nostalgia de todo estranha aos actores dos seus filmes, aos agentes sociais que os povoam, prospectores e divulgadores da diferença não para integrá-la num mundo de todos, mas para situá-la num mundo culturalmente hierarquizado?

 

Ao sair de Manchester, naquela manhã de tão doce Outono inglês, eu estava a voltar para casa, estava a voltar para o continente onde tinham sido rodados alguns dos mais notáveis filmes exibidos e premiados no festival que findava, para a terra dos “profetas” e dos healers, dos travellers e dosnomads, para o território das Women who Smile. No meu país, entretanto, o drama do momento era o da troca da moeda para acorrer ao desastre de uma economia incontrolável, era a declaração de falência de um sistema e a balbuciante tentativa da sujeição a um outro, era a guerra a multiplicar ruínas, culturais até, era ao Sul o desacerto a dividir a luta contra o apartheid, era ao Norte a Libéria a expor-se desventrada. Que cada um agora, eu cidadão da África e eu antropólogo branco e grisalho, digerisse a sua imagem de África.

 

Publicado em Anthropology Today, vol. 7, n.° 3, 1991, do Royal Antropological Institut, Londres, a propósito do Internacional Festival of Etnographic Film ocorrido na Universidade de Manchester em 24-25 de Setembro de 1990.

 

por Ruy Duarte de Carvalho
10 Setembro 2011

 

 

Comentários sobre o autor publicados na imprensa:

 

http://www.publico.pt/portugal/jornal/cinzas-de-ruy-de-carvalho-depositadas–no-deserto-20046194:

 

“As cinzas de Ruy Duarte de Carvalho serão depositadas, entre sábado e segunda-feira, num local do deserto do Namibe, disse à agência Lusa Luhuna de Carvalho, filho do escritor e antropólogo. A cremação terá sido realizada ontem, e as cinzas serão transportadas, por familiares, até um local escolhido pelo autor.

 

Segundo a mesma fonte, o Ministério da Cultura de Angola está a organizar uma vigília no local das cerimónias fúnebres do escritor, onde serão depositadas as cinzas. Ali ficará também uma placa simbólica, marcando a morte do escritor.

 

Outras organizações angolanas, entre as quais a União de Escritores Angolanos e a Chá de Caxinde, estão também a organizar eventos em Luanda para assinalar as cerimónias fúnebres, acrescentou ainda Luhuna de Carvalho.

 

Ruy Duarte de Carvalho faleceu na semana passada aos 69 anos em Swakopmund, na Namíbia. Considerado pelos seus pares como um dos maiores nomes da literatura de língua portuguesa, foi um autor multifacetado cuja obra se estendeu das artes plásticas ao cinema, passando pela antropologia e também pela poesia.”

 

 

Notícia Publicada do Site Buala:

 

Exposição de aquarelas de Ruy Duarte de Carvalho em Lisboa

 

18 a 20 JAN., às 20h no  Teatro Camões

 

(A) Resistência dos materiais
“… Demos agora a volta:… Paus, pedras, ramos, ossos, carvão, argila, pó.” – Ruy Duarte de Carvalho, “A Câmara, a escrita e a coisa dita…”

 

´Tem muita coisa de espelho, esta arte da água e sementes que aqui se pratica para fazer parar o tempo e encher a cidade de histórias na observação directa do quanto o mundo muda e com ele muda a rua, a casa velha, a luz, o sentido vertiginoso da buganvília. Espaços incorporados surgem aqui tratados da maneira certa seguindo o traçado das suas antiquíssimas formas subjugadas a novas perspectivas que obrigam o olhar a elevar-se do chão para seguir a dupla organização das espécies (muros, prédios, varandas, esquinas) enquanto espaço habitado e representado em sequência pois a sua mais primitiva materialidade muda. Era uma vez uma cidade, seus centros em movimento contínuo, suas três dimensões invertidas, seus habitantes e suas falas. O celibatário, aquele que desde sempre permanece “atento às falas do lugar” reconhece que o centro da cidade se reduz comprimido pelas margens maiores. Desloca, então, o seu lugar de ver e contar a partir do seu olhar. Escolhe a perspectiva porque há um espaço que invade o outro, o contamina e cria uma intima distância entre “local achado e local perdido” da qual se pode dar notícia de uma memória havida, guardada entre paredes, submetida ao pincel… estórias de vizinhança, quadrículas, convívios, interditos.

Aguarelas… já se vê.

 

Ana Paula Tavares, 2011.”

 

Notícia Publicada no Site Buala:

 

Biblioteca Ruy Duarte de Carvalho

 

“Venho fazer um apelo:

Entre Julho e Agosto do ano passado, no Namibe, terra de Ruy Duarte de Carvalho, após seu falecimento e em sua homenagem, foi inaugurada uma escola do 1º e 2º ciclo com o seu nome.

 

Um ano após a sua partida estive no Namibe a fazer um levantamento do espólio, que se encontra lá guardado.

 

Através da Directora da escola, Dr.ª Augusta Carvalho, e da governadora, Dr.ª Cândida Celeste da Silva, e de toda a equipa da escola, uma biblioteca escolar abriu as portas. Tendo sido eleita madrinha tive que fazer um painel com alguns dos amigos sobre o percurso do Ruy para estas crianças saberem o porquê do nome da sua escola. Foi bonito pois este lugar mexeu com ele….sempre… durante toda a sua vida.

 

Desta maneira, o que me preocupa é  a possibilidade da biblioteca estar vazia. Já pedi ajuda e nunca tive resposta. Pois acredito que muitas editoras tenham stocks de livros escolares, livros infantis e juvenis entre outros que possam disponibilizar.

 

 

Estas crianças e a equipa que estava à frente de este estabelecimento mostrou-se muito interessada em trabalhar pela EDUCAÇÃO. É uma escola muito bonita e bem tratada, até horta tinha.

 

Enfim, coisas que nos aparecem pela frente e que nos fazem pensar, porque por força do destino eu também trabalho numa escola e ao fim do dia recebo crianças numa biblioteca, o que é fundamental para abrir novos horizontes, é muito importante ler para crianças e depois deixá-las transmitir o que sentiram.

 

Assim apelo às EDITORAS que dêem uma mão”.

 

Para contacto Eva 934614810 ou  Marta Lança 964878330.

 

Agradecemos ao site Buala pelas reportagens aqui transcritas. Para maiores informações e comentários sobre a obra de Ruy Duarte de Carvalho sugerimos consulta ao Portal Buala, www.buala.org/ contato: buala@buala.org.