Desmedida, imagem de Ivone Ralha… e é aqui que me ocorre formular a seguinte pergunta : sendo que o mundo global reconhece ter de fazer imperativamente alguma coisa por si mesmo em relação à sorte global do globo, sendo que as vozes emergentes terão obrigatoriamente de ser ouvidas, não seria talvez então também já agora altura de atender ao que toda a espécie de vozes que o mundo ainda comporta poderá ter eventualmente a dizer no interesse talvez de todos? … mesmo as vozes daquele “outro” que eu aqui identifico envolvido entre cerradas aspas ?…que podemos viver sem ele, recorrendo ao mote deste encontro, talvez possamos, até porque ele vai inexoravelmente desaparecer, mas não seria pertinente, para o debate e para a sorte do mundo, tentar ou ensaiar ouvi-lo ainda, enquanto existe ?…
… estou a sair da Namíbia onde de há cinco meses a esta parte tenho usufruído do luxo de poder dedicar-me exclusivamente a um livro que estou escrevendo … é um livro de meia-ficção, na sequência de outros em que tenho tentado essa modalidade, e cuja ação se desenvolve em grande parte no sudoeste de Angola e no noroeste da Namíbia, onde subsistem precisamente populações que eu posso identificar com o tal OUTRO absoluto que tenho vindo a referir….. quando recebi lá o convite para participar neste encontro acedi sem grande hesitação porque em meu entender me via colocado uma vez mais numa situação em que a realidade vem ao encontro da ficção e poderia de alguma forma integrar o estar agora aqui no programa que me tinha anteriormente imposto e via assim interrompido… na trama do enredo que tenho vindo tratando nesse livro em curso, dois dos seus personagens concebem a certa altura poder ter para propor ao mundo, a partir das cosmologias e das cosmogonias locais, australo-africanas, para o caso, a figura de um herói tutelar perfeitamente adequado às preocupações, às aflições e às urgências que parecem impor ao mundo em que vivemos uma resposta pronta, eficaz, adequada e no entanto bem difícil de conjeturar ou conceber porque essas preocupações, aflições e urgências decorrem afinal de pressupostos e de dinâmicas que o mundo moderno, ao mesmo tempo, parece pouco disposto a por em causa…
… o herói em questão dá pelo nome de Nambalisita, e é figura de grande estatura no imaginário e na expressões das populações da região a que me referi e que também costumo identificar como mancha clânica pastoril do sudoeste da África, constituída sobretudo por populações herero, ovambo e nyaneka … Nambalisita, com quem eu lido de muito perto desde que há mais de um quarto de século rodei um filme chamado Nelisita, é aquele que se gerou a si mesmo… ele nasce de um ovo auto-fecundado…e contra o mal e os maus e os desconcertos do mundo, Nambalisita faz apelo aos animais todos da criação, seus irmãos, os seus rapazes, e até mesmo à criação inteira…
…só que, sabem os personagens do meu livro muito bem, não será fácil propor um herói desses ao mundo ocidental e ocidentalizado que detém as rédeas do mundo e dos seus destinos…. Nambalisita emerge de uma matriz cosmogónica e cosmológica que não é a que conferiu ao ocidente o poder para vir a ocupar o lugar que hoje ocupa no mundo globalizado… enquanto para nós aqui, nesta borda da África, refere um desses personagens, para a nossa maneira de ver as coisas a tudo quanto é vivo assiste uma alma igual que afinal cada ser vivo, seja ele pessoa, hiena ou lagartixa, exprime, vivendo, conforme o corpo de que dispõe, para os brancos e para aqueles que os brancos converteram, domesticaram à maneira deles, é tão só o corpo que identifica o homem enquanto animal, porque o que o que constitui como homem é ter uma alma de que o resto da criação não dispõe… é essa a expressão da razão, da arrogância e da soberba invasora… ela coloca o homem fora da condição biológica como se ele estivesse a salvo de tal baixeza e partilhasse com deus, só ele e não o resto da criação toda, da condição divina… o homem no centro do universo e a servir de medida a tudo, até a deus… antropoformização de tudo, mesmo de deus… o divino configurado como um deus branco de barbas brancas… tudo domesticado segundo um modelo que previa até o selvagem que nós seríamos aqui, um meio-humano que só tem acesso ao patamar da humanidade, só é verdadeiramente humano, quando aferido em relação não à medida do resto da criação no mundo, mas à da maneira de certos homens que têm uma versão do mundo e da vida que impõem aos outros, e armas, meios e dispositivos para tirar benefício disso… o universo feito para uso deles e, em nome de deus e da civilização, autorizados a converter entretanto o mundo todo, divino, humano, animado e inanimado, às suas maneiras, à sua maneira… uma maneira, a do paradigma que cobriu a expansão ocidental, portanto, que não pecava afinal por sobreestimar as pessoas… não as colocava mas é tão alto quanto lhes cabe… porque mesmo depois de ter chegado o tempo das descolonizações e da entrega das soberanias locais aos ocidentalizados que provinham das populações indígenas anteriormente encontradas, o que de facto aconteceu foi legar-lhes, sem nação ou arranjo pluri-nacional, uma herança envenenada de estados modernos definidos por fronteiras políticas coloniais historicamente recentes e alheias aos diferentes e muitas vezes distintos grupos ou sociedades envolvidos ou retalhados… e exigiu-se-lhes de pronto o desempenho de estados-nação num mundo universal onde as regionalides dominantes em vias de consumação no quadro político das globalidades operam, ao mesmo tempo, no sentido de se desembaraçarem dessa figura política de estado-nação, como está acontecendo por exemplo com a Comunidade Europeia…
…só uma grande volta paradigmática, portanto, acrescenta então outro personagem plenamente ao corrente das terminologias ocidentais…paradigmática e verdadeiramente pragmática… mas que não contemplasse esses pragmatismos oportunistas e cínicos em que a categoria do necessário e do vantajoso substituiu completamente a do possível e consistem em não conseguir encarar nada sem fazer logo as contas do beneficio parcial que a situação inspira e não olhar para o mundo senão em função disso…
…da mesma maneira que seria necessário ter em conta que a uma tal volta paradigmática não bastaria admitir que o “OUTRO” pudesse ser capaz de ver os fenómenos e o mundo e avaliá-los e equacioná-los e aproveitar-se deles segundo as suas razões e os seus interesses, como faz o ocidental…. isso não é volta paradigmática nenhuma, é uma questão de bom senso…volta paradigmática será admitir, e reconhecer, que alguém, mesmo sendo o “OUTRO”, pensando de uma maneira radicalmente diferente, possa conseguir ver certas coisas e certos fenómenos de uma maneira melhor e mais adequada à efetiva configuração do mundo, e que os ocidentais e os ocidentalizados, nesse caso, é que teriam a aprender com o “OUTRO”, e que isso acabaria por convir a todos… uma volta, assim, que permitisse, perante os impasses que a expansão e a imposição do paradigma ocidental produz no mundo inteiro – inclusive nessas partes do mundo de onde ele saiu porque estão agora a contas com o troco, que são os filhos dos ex-colonizados, que estão a nascer lá – , permitisse ao próprio saber ocidental achar ser tempo de prestar uma atenção diferente aos chamados discursos arcaicos, dar-se a uma contra-descoberta, por assim dizer, daqueles que antes foram descobertos pelas caravelas… o que talvez, na linguagem dos especialistas, pudesse ser formulado dizendo que seria tempo de ouvir o ‘outro’ enquanto o “outro” ainda existe, antes que haja só o outro, o tal imprevisível mestiço universal que o tempo se encarregará de produzir…
… é isto que os meus personagens dizem no livro que estou a escrever e interrompi para poder estar agora aqui… esse livro virá a esta à disposição de todos dentro de algum tempo, e só vou deter-me agora aqui num dos aspectos que enunciei : ouvir ainda esse “OUTRO” enquanto ele ainda existe… ainda existe mesmo ?…
….existe ainda sim, em certas partes do mundo como aquela de onde estou a sair e me mobiliza de há décadas a esta parte a atenção total……… e se me empenho agora aqui em fazer campanha para que esse “outro” seja ainda tido em conta e ouvido não é tanto porque entenda que devemos ir todos escutar atentamente o que os mais-velhos de lá poderão ter ainda para dizer e para nos ensinar…….. a minha experiência de antropólogo leva-me a encarar com a maior prudência o que os mais velhos de hoje poderão vir a dizer aos que os abordam para interrogá-los……… dizem exatamente aquilo que muito pragmaticamente entendem que lhes convém que os outros ouçam, como acontece seja com quem for em qualquer parte do mundo……… será antes imperativo, em meu entender, ter essas populações em conta porque elas ainda hoje, neste preciso momento, continuam a ser alvo de uma violentação, de uma lesão, que lhes é imposta pela expansão ocidental ainda em curso e acionada tanto por ocidentais estrangeiros como por ocidentalizados compatriotas seus…….
….não estou aqui mandatado por ninguém para falar em nome seja de quem for……. falo por mim… não defendo nenhuma causa, assumo uma questão que diz respeito à minha própria razão de existir… mas não posso deixar de referir, quando sou chamado a pronunciar-me acerca de questões que se reportam ao lugar do OUTRO, de que forma me aflige, para não dizer de outra maneira, ver populações que eram assediadas antes por agentes da ocidentalização impondo-lhes assumir os sinais e as maneiras do modelo ocidental e do progresso tecnológico e que são assediadas hoje pelos mesmos agentes ou equivalentes que agora pretendem impor-lhes a preservação dos sinais e as maneiras dos seus modelos arcaicos e não-ocidentais porque isso passou a insinuar-se como o mais rentável tanto para uns como para os outros desde que se deixem integrar em menus de programas turísticos e se deixem representar como expressões de um exótico ecológico e redentor ao lado de outras atrações bizarras como manadas de zebras, de elefantes e de gazelas…
….não me perguntem que soluções proponho para problemas desta ordem…não sou nem político, nem profeta, nem militante seja do que for… mas terão certamente o direito de perguntar-me aonde quero chegar se não tenho propostas para salvar o “OUTRO” e todavia ainda assim convido a que esse outro seja tido em consideração e ouvido embora também não proponha que vão lá ouvir o que os mais-velhos poderão ter para ensinar… que tipo de ação ou de atitude me leva ainda assim a pretender reter-vos a atenção ?…
…o que eu proponho é bem simples e ao alcance de interessados e de profissionais susceptíveis de ser congregados à volta de questões desta natureza… não é ter um caminho a propor… é antes ter algumas idéias para uma eventual hipótese de poder vir a ajudar a encontrar maneira de achar um caminho… admitir uma possível perturbação, reconfiguração ou mesmo substituição prospectiva, pragmática e programática do paradigma cosmogónico, cognitivo, institucional e político ocidental / global / universal, recorrendo a outros quadros paradigmáticos… não se trataria de introduzir qualquer espécie de remedeio, de compensação ou de arranjo nos terrenos do paradigma humanista, mas antes de tentar configurar, ou reconfigurar, um novo paradigma… no âmbito desta proposta a hipótese apenas seria encarada a partir e através da identificação, da convocação e da possível integração de dados provenientes de outros quadros de concepção, cognição, representação e ação afins a géneses africanas e outras…… não se trataria seguramente de tentar suster a mudança mas de convocar outros saberes, outras visões, outras maneiras, outras hipóteses de mudança para além da que é imposta pelo programa ocidental… nem se trataria de visar a substituição de um paradigma por outro ou de propor um melhor que o outro… mas alvitrar apenas alguma ação que soubesse extrair do que se sabe, e de todos os meios e expressões, alguma maneira melhor de lidar com toda a ordem de impasses sem estar a criar sempre novos impasses civilizacionais, acrescentando novos impasses a toda a ordem deles…