Antropóloga, professora da Universidade Federal de Santa Catarina, coordenadora do NUER e do Projeto kadila.
Em minha terra natal se diz que somente há duas maneiras de morrer: loucura ou de mal do coração. Este pensamento divide a morte em duas saídas: uma, feita da partida para um outro mundo aqui mesmo, a outra, passando para o outro lado, invisível e desconhecido. Poucos dias após termos conversado longamente ao telefone, Samuel foi acometido por uma crise acentuada pela cucunimatya (dengue) e seu coração parou de bater definitivamente. Nesta nossa última conversa, falamos sobre as gestões públicas de nossas universidades e as nossas inúmeras dificuldades para obter apoio para nossas pesquisas. Das diversas barreiras decorrentes diretamente dos trâmites burocráticos das agências destinadas a nos apoiar, das dificuldades em nossas próprias universidades.
Diante de tantas e tão diversas barreiras interpostas para a continuidade de nossas pesquisas no deserto, o professor Samuel disse-me: “professora, nós seguimos até aqui praticamente pelo nosso esforço próprio, nossa persistência e interesse em desenvolver pesquisas no deserto, tendo que enfrentar todas as dificuldades criadas pelas mesmas instituições que se propuseram a nos apoiar, vamos continuar, vamos seguir adiante, vamos prosseguir…
Antes de nos despedir eu mencionei nossa vontade em lhe entrevistar, em lhe propor que discorresse mais detalhadamente sobre algumas questões para o nosso site conjunto do Kadila. Ele respondeu-me que sim, combinamos então que ele iria começar a tomar notas de coisas que gostaria de falar em seu depoimento e depois poderíamos conversar mesmo pelo telefone e gravar. Isto infelizmente não aconteceu pois ele veio a falecer poucos dias depois desta conversa.
Seu desaparecimento não é somente silêncio agora, mas um enorme vazio, um ponto de interrogação sobre o que irá acontecer com o Ce.Do. A continuidade do Projeto kadila visa mais que tudo, depois de sua partida, honrar os compromissos que assumimos com este importante e visionário pesquisador do deserto do Namibe.
Em início de março de 2014, a professora Amélia Mingas, em atenção ao seu colega e amigo Samuel, nos acolheu quando em nossa visita a Luanda e seu apoio foi fundamental para a continuidade do Projeto kadila. Sempre citada e reconhecida pelo Samuel como nossa possível colaboradora, encontrei a profa. Amélia em 2013 em Belo Horizonte, onde iniciamos nossa conversa sobre a participação da Lingüística no Projeto e a sua participação através de um acordo de cooperação científica. Esta conversa muito nos encorajou a ir a Luanda em Missão de Trabalho e lá discutimos os termos de renovação do convênio da UFSC com a UAN em que somos hoje as responsáveis. E assim fomos em segunda viagem a Luanda em março de 2014. O professor Samuel naquela oportunidade nos acompanhou nas reuniões do projeto, organizou um encontro com os estudantes do Observatório da Transumância e apresentou as candidaturas desses estudantes para virem ao Brasil, nos levou a conhecer Luanda e seus arredores. Infelizmente, em seguida a este encontro, esses estudantes tiveram que enfrentar a decepção e o veto da sua própria Faculdade. Este fato muito o constrangeu e abalou. Revelou-me, inclusive, que pretendia buscar apoio em outras universidades, mas isto infelizmente não aconteceu pois ele veio a falecer dias depois.
O professor Samuel Aço teve a seu favor, um árduo trabalho diário e de décadas, insistente e persistente, sempre apoiado por sua esposa Teresa, para erguer um instituto de pesquisa e acolhimento de pesquisadores numa região de difícil acesso, onde os falantes das línguas estão pouco a pouco desaparecendo ou em que o português vai dominando a cena da colonização que vai prosseguindo em outros termos. Ele teve a seu favor o pioneirismo e aquele amor todo que devotou ao Deserto de Namibe.
A vida no deserto cativou o casal Samuel e Teresa Aço que depois de criar os filhos passaram a exercer o papel de anteparo dos grupos de pastores esquecidos e desamparados no deserto. Seus esforços se dirigiram para aquela região e se uniram às iniciativas de pessoas e instituições locais para criar projetos de valorização da vida humana no deserto.
Em nosso encontro com os pastores em 2013 pude ver que as pessoas do deserto muito o admiravam e viam nele um parceiro e amigo.
Tendo dirigido a divisão de patrimônio histórico de Angola nos anos após a guerra, foi nesta época que viajou por todo o país vendo as transformações introduzidas pela destruição da guerra, e sobretudo o que restou das culturas locais resistentes aos colonialismos nacionais e estrangeiros. Sua antropologia era, portanto, engajada com a preservação da memória e das culturas locais, com a diversidade cultural e com os direitos dos grupos humanos habitantes da região.
Foi no distrito de Tombwa que ele encontrou apoio para fundar o Centro de Estudos do Deserto e foi lá que ele recuperou o seu amor pela antropologia. Nos últimos anos estava licenciado da UAN, dedicando-se em tempo integral a fincar ali uma semente poderosa de valorização dos saberes locais, matriz de empoderamento e manutenção da vida que os diversos grupos familiares transformaram em desafio diário de criar e recriar a vida em movimento no Deserto de Namibe.
Samuel Rodrigues Aço iniciou no deserto a sua preciosa colheita, semeando em lugar, a princípio, onde nada se vê, além das areias…
Em homenagem a nossa amizade, em honra ao seu gesto de amor a Angola e ao Deserto, deixo aqui a voz do poeta Agostinho Neto:
A tua mão poeta
atravessou os oceanos até mim
A tua mão poeta
encontrou-me sentado na ilha-África
levantada no coração de Lisboa
A tua mão poeta
partiu de mim para mim pela tua voz
pela tua voz ritmada das enxadas
nos terrenos adubados pelo sangue da sujeição
pela tua voz milhões de vozes fraternidade
amor
Situadas para lá das algemas para lá das grades
Sempre livres sempre fortes sempre grito sempre riso
A tua mão poeta
um poeta de amor
escrito com cinco dedos de África
sobre a ânsia humana de amizade e paz
A tua mão poeta
sonorizando o batuque liberdade
entre as cubatas escravas da vida
Tenho-a na minha mão
e através dela
oferto-me á nossa África.
Buenos Aires, 10 de março de 2015.
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