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POLÍTICAS LINGUÍSTICAS

Cristine G. Severo
Linguista, prof. da UFSC, pesquisadora do projeto Kadila

 

As políticas linguísticas lidam com a dinâmica oficial e extra-oficial das línguas em contextos variados. Tem focado, tradicionalmente, as iniciativas estatais e jurídicas de regulamentação e promoção das línguas no contexto de formação do Estado-nação. Angola, pelo seu multilinguismo, tem sofrido uma série de intervenções oficiais em torno da questão da língua. Desde o contexto colonial, uma série de iniciativas políticas foram tomadas em nome das línguas, incluindo o papel da língua portuguesa como signo colonial de diferenciação e de hierarquização entre as pessoas.

 

O processo de luta pela independência de Angola incluiu, entre outros aspectos, a consideração da língua como bandeira política. Os partidos políticos envolvidos nas lutas coloniais assumiam diferentes posicionamentos em relação às línguas de Angola. O MPLA (Movimento Popular pela Libertação de Angola), por exemplo, definiu a língua portuguesa como língua de unificação e construção da ideia de nação angolana, evitando, com isso, priorizar certas línguas e grupos locais em detrimento de outros. Essa política linguística foi posta em funcionamento após a Independência de Angola em 11 de novembro de 1975, que,  assim como de outras ex-colônias portuguesas, culminou com a queda do regime português ditatorial de Salazar.

 

O primeiro presidente de Angola foi Agostinho Neto (1922-1979), líder do MPLA e renomado escritor angolano. Em sua tomada de posse como primeiro presidente da fundação da União dos Escritores Angolanos em 1977, Agostinho Neto reafirmou o papel da língua portuguesa e a importância da defesa do multilinguismo e das línguas africanas em Angola, conforme ilustra o excerto a seguir:

 

O uso exclusivo da língua portuguesa, como língua oficial, veicular e utilizável actualmente na nossa literatura, não resolve os nossos problemas. E tanto no ensino primário, como provavelmente no médio, será preciso utilizar as nossas línguas. E dada a sua diversidade no país, mais tarde ou mais cedo deveremos aender para a aglutinação de alguns dialectos, para facilitar o contacto. (INL, 1977:7)

 

Em termos jurídicos, a constituição da república de Angola, de 2010, prevê no artigo 19 a seguinte política linguística do Estado nacional (http://www.tribunalconstitucional.ao/Conteudos/Artigos/lista_artigos.aspx?idc=150&idsc=160&idl=1):

 

  1. A língua oficial da República de Angola é o português.
  2. O Estado valoriza e promove o estudo, o ensino e a utilização das demais línguas de Angola, bem como das principais línguas de comunicação internacional.

 

Ainda sobre as iniciativas oficiais, em 2011 foi aprovada a Lei do Estatuto das Línguas Nacionais de Origem Africana com vistas a regular a situação linguística de Angola em contextos administrativos, educacionais e midiáticos. Dentre as línguas consideradas nacionais em Angola estão: umbundu, kimbundu, kikongo, cokwe, kwanyama e nganguela. Tais línguas pertencem a duas famílias linguísticas diferentes: bantu (englobando a maioria das línguas angolanas) e khoisan (uma minoria que tem como traço marcante o uso de cliques). Além dessas línguas consideradas nacionais, há centenas de dialetos falados em Angola. Em termos estatísticos, de forma geral, a língua portuguesa é majoritária na capital do país e nos centros urbanos, sendo a mais falada em Angola. As línguas angolanas são usadas em regiões rurais, sendo grande parte dos angolanos bilíngues ou multilíngues. A língua angolana mais falada é umbundu, seguida do kimbundu, kikongo e chokwe.

 

Em 2014, Angola promoveu um Censo nacional que teve como um dos seus alvos o levantamento da diversidade linguística de Angola. Iniciativas recentes de proteção das línguas nacionais inclui a instauração de ensino bilíngue. Mais especificamente sobre o papel da escolarização na promoção das línguas nacionais, a Lei de Bases do Sistema de Educação de Angola – Lei n.º 13/01 de 31 de dezembro de 2001 (http://planipolis.iiep.unesco.org/upload/Angola/Angola_Lei_de_educacao.pdf) – propõe a seguinte regulamentação:

 

ARTIGO 9º (Língua)

  1. O ensino nas escolas é ministrado em língua portuguesa.
  2. O Estado promove e assegura as condições humanas, cientifico-técnicas, materiais e financeiras para a expansão e a generalização da utilização e do ensino de línguas nacionais.
  3. Sem prejuízo do nº 1 do presente artigo, particularmente no subsistema de educação de adultos, o ensino pode ser ministrado nas línguas nacionais.

 

Esta mesma preocupação estatal com a preservação das línguas nacionais é verificada no Estatuto Orgânico do Ministério da Cultura de Angola (http://saflii.org/ao/legis/num_act/eodmdc413.pdf) que, entre suas atribuições, inclui:

 

b) Desenvolver a acção de direcção e coordenação nas áreas do património cultural, da criação artística e literária da acção cultural da investigação científica no domínio da história das línguas nacionais e da cultura.

c) Valorizar os factores que contribuam para a identidade cultural da população angolana;

d) Promover os valores culturais susceptíveis de favorecer o desenvolvimento económico e social;

 

Tais iniciativas motivaram estudos e descrições linguísticas com fins, entre outros, de sua formalização em práticas letradas. Um exemplo é a descrição da morfologia e sintaxe da língua ngangela, pelo professor doutor Zavoni Ntondo. Além disso, o Departamento de Línguas e Literaturas em Línguas Angolanas da Universidade Agostinho Neto tem pesquisado e ensinado desde 2004 as línguas cokwe, umbundu, kimbundu e kikongo. Tais línguas têm sido também alvo de políticas de ensino nas regiões leste (cokwe), sul (umbundu), centro-oeste (kimbundu) e norte (kikongo).

 

As iniciativas oficiais vinculadas aos Ministérios da Cultura e da Educação revelam uma preocupação estatal e oficial de preservação das línguas angolanas que possuem estatuto de línguas nacionais. Para além das iniciativas oficiais, há uma série de práticas locais que ratificam o lugar que essas línguas ocupam na sociedade angolana. Exemplos são os meios de comunicação que fazem uso das línguas de Angola. A Rádio Nacional Angola (estatal) difunde o seu programa N’GOLA YETU em 10 línguas étnicas que designa como “nacionais” (http://www.rna.ao/ngolayeto/apresentacao.cgi). A Televisão Pública de Angola (estatal) difunde notícias em 7 línguas que designa como “regionais”, também com tempos iguais de emissão.

 

Além dessas práticas, é possível, também, considerar o papel que os escritores angolanos desempenharam na divulgação e registro das línguas locais. No caso do projeto Kadila, que tem se voltado para as pesquisas na região do deserto do Namibe, importante ressaltar os registros feitos por Ruy Duarte de Carvalho na obra “Vou lá visitar os pastores”. Abaixo seguem excertos da obra que ilustram as línguas faladas pelos Kuvale, povos pastoris do sul de Angola, intercaladas por imagens que registram a singularidade das práticas discursivas dos Kuvale.

 

“(…) quando os Brancos chegaram ao Vale do Kuroka encontraram aí esse a quem hoje chamamos Kurocas, saídos dos antigos Kwepe. Para ocupar esses terrenos, os Brancos pediram ao soba deles, o Mulukwa, se podiam cultivar umas plantinhas aí, um terrenozito assim […] E o Branco plantou o algodoeiro, pitanga e não sei mais quais os outros paus, foi embora, ficou só o empregado a tomar conta, o patrão foi buscar a guareta de aguardente. O Mulukwa, o patrão quando vinha era amigo dele, trazia-lhe coisas, faz de conta era o troco, e ia afastando o terreno e plantando sempre a frente e de cada vez paga era aquela guareta de aguardente e uns panos de fazenda, O Mulukwa foi deixando o homem alargar e assim o Branco chegou de receber já a metade do terreno todo, bastante mesmo. Até que chegou essa doença, tossiam muito, parece que é a tuberculose, e acabou com eles quase todos. Esses eram os Kwepes próprios, a língua deles a gente não conseguia compreender, nem nossos pais, era uma língua com estalos. E ainda tem um resto desses povos que fala dessa maneira. Mas a maioria geral dos filhos desses Kwepe são os Kuroka de hoje, não acompanham esse caminho, agora estão mais tipo mucubal.” (Carvalho, 2000, p. 61)

 

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“(…) muitos Kuroca viraram Kimbares, muitos kimbares viraram kurocas, os que continuam pastores adoptaram a língua e a prática Kuvale.” (Carvalho, 2000, p. 62)

 

 

Referências bibliográficas:

 

AGADJANIAN, Victor; NDOLA Prata. War, Peace, and Fertility in Angola.  Demography 39, 2 (2002): p. 215-231.

 

CARVALHO, Ruy Duarte de. Vou lá visitar os pastores. Rio de Janeiro: Gryphus, 2000.

 

INSTITUTO NACIONAL DE LÍNGUAS. Histórico sobre a Criação dos Alfabetos em Línguas Nacionais. INALD. Departamento de Cultura e Desporto. RPA. Luanda. 1977.

 

INSTITUTO NACIONAL DE INVESTIGAÇÃO E DESENVOLVIMENTO DA EDUCAÇÃOLei de Bases do Sistema de Educação. Angola Digital, 2001.

 

NTONDO, Zavoni. Morfologia e Sintaxe do Ngangela. Editorial Nzila, Luanda, 2006.

 

PEDRO, José. Lei sobre Estatuto das Línguas Nacionais em estudo: entrevista. O País online 8 Nov. 2010.

 

SEVERO, Cristine Gorski. Línguas e discursos: Heterogeneidade linguístico-discursiva e poder em Angola. Veredas. Revista da Associação Internacional de Lusitanistas, v. 15, p. 19-46, 2011.