Larisse Louise Pontes Gomes
Mestranda em antropologia Social, pesquisadora do NUER
Larisse Louise Pontes Gomes
Mestranda em antropologia Social, pesquisadora do NUER
Introdução
Começo esse breve texto com esta imagem para ilustrar a experiência da pesquisadora – com cabelo crespo –que vos fala passou e que é vivenciada por muitas pessoas no atual contexto, o fato de perguntarem: “Posso tocar no seu cabelo?”. A imagem inverte os papéis e por isso achei interessante começar com ela. Pessoas que têm o cabelo crespo/cacheado, principalmente se for do tipo black power ou similar, convivem diariamente com diversos conflitos. Este e outros conflitos é o meu interesse de investigação e essa experiência reforçou a minha vontade em apostar no tema como pesquisa antropológica. Por que o cabelo crespo suscita tanto estranhamento, preconceito e até aversão? O que a estética interfere na constituição de identidades e relações sociais? A identidade negra encontra-se circunscrita em caracteres fenotípicos?
I-Alguns conceitos e categorias
Compreender e analisar as relações de raça – o termo raça aqui é tomado como termo que emerge no discurso dos sujeitos acessados, ou seja, como um construto social – e identidade a partir da dinâmica estética que emerge do processo de transição capilar é o que almejo nesta pesquisa. A transição capilar é uma dinâmica recente e que se encontra em intensa reverberação, principalmente no contexto da internet, de onde partiu o primeiro insight sobre o tema.
Para abordar um conceito – raça – que parece obsoleto nas Ciências Sociais me apoiarei em autores que buscam abordá-lo a partir de uma linha histórico-social de compreensão sociológica, a exemplo de João Filipe Marques. “Na viragem para o século XX, o conceito de raça está plenamente difundido por todos os campos do saber e do agir. É uma chave que fornece inteligibilidade à diversidade, legitimidade à dominação e fundamento à destruição.” (MARQUES, 1995, p. 45) O autor aponta o século XX como o ápice das atrocidades provocadas pela equivocada aplicação e desenvolvimento da ideia de raça em séculos anteriores e proposta, principalmente, por evolucionistas sociais e eugenistas, somente com um dos piores episódios da humanidade, pós-1945, que a validade desse conceito é questionada e reavaliada.
Reitero, portanto, que o conceito de raça será abordado, a princípio, a partir do discurso dos sujeitos que dão ênfase aos caracteres somáticos (cor da pele, textura do cabelo e outros atributos físicos) como principais elementos de identificação e de pertença a um grupo e a uma suposta identidade, o que implica em um sentido – como Marques aponta – de uma raça social, ou seja, pensada como uma construção social. Tal denominação, a meu ver, ainda impregnada de um aspecto biológico, pode dar margem para algumas confusões, principalmente, para àqueles que vêm como apartadas um “ser” do “ter”- ser negro e/ou ter atributos físicos (ou sinais diacríticos, como alguns preferem chamar) negros. No Brasil, separar tais dimensões é algo praticamente impossível no cotidiano e que buscarei explorar para melhor compreender.
A pesquisa centrará no processo de transição capilar com enfoque no cabelo crespo. Tais elementos estão imbricados, pois fazem parte do mesmo processo. Ciente disso, a pesquisa terá como arestas: raça, identidade e gênero. E o que seria esse processo? A Transição capilar, expressão que advém de uma dinâmica que encontra efervescência na internet, sites, blogs, e principalmente, em redes sociais nos últimos anos [mais ou menos, a partir do ano de 2012] pode ser explicado como:
…um processo assim denominado por pessoas que decidem parar de fazer procedimentos químicos, tais como: relaxamentos, alisamentos e escovas “inteligentes” em seu cabelo para modificar estruturalmente o seu aspecto. Como a própria expressão indica é um processo de transição, de mudança e que como a maioria das mudanças implica em transformações, adaptação e a saída de um lugar-comum para outro diferenciado.(GOMES, 2014, p. 2)
Tal mudança acontece de si para si, muitas declaram que sua relação com o próprio corpo e imagem foram alteradas. Passaram a se enxergar mais bonitas e/ou a serem mais vaidosas; até a uma mudança de atitude frente aos outros, se mostrando mais seguras e encorajadas a (re)afirmar suas posições. Assim, muitos se sentiram seguras a enfrentar situações onde eram impelidas a mudarem seu cabelo para conseguirem um emprego ou serem aceitas na escola/faculdade, por exemplo.
Nesse processo há uma etapa crucial, onde muitas pessoas temem, o Big Chop. Big Chop (BC) é o “grande corte”, momento onde toda a parte lisa, não “natural” (O termo ”natural” será empregado no decorrer do trabalho para fazer alusão ao cabelo sem produtos alisantes ou relaxantes. Ou seja, o cabelo com formato do fio como é de fato, sem alteração de textura) é cortada do cabelo e, para além da mudança visual, praticamente, proporciona uma mudança em diversas esferas da vida do indivíduo análoga aos rites de passagecomo mencionado por Van Gennep (1960 apud TURNER,2013, p. 97). Dependendo do tempo que parou de usar produtos alisantes e do crescimento do cabelo, este pode ficar muito curto. Em outros casos, as mulheres não querem esperar 4 ou 5 meses para fazer o corte e raspam a cabeça, considerado por muitas como um ato de coragem. Por outro lado, outras com receio do comprimento do cabelo, por não gostar ou achar que não se adaptarão ao cabelo curto preferem deixa-lo crescer até o ponto que permaneçam com ele em um tamanho médio/longo – o que pode levar até anos. Assim, convivem com duas texturas de cabelo – uma parte lisa e outra crespa/cacheada, numa espécie de estado de liminaridade. Nessa etapa é quando diversos conflitos surgem. Desde a não-aceitação ou estranheza intrafamiliar até uma estigmatização fenotípica, além de um momento de negociação e aceitação de si e então a suposta “descoberta” de uma identidade.
O conhecer-se através do conhecimento de outros implica em relativizar-se e, dessa forma, minar todo o etnocentrismo sobre o qual se alicerçam a incompreensão e a intolerância. (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976, p. XX)
No processo de transição capilar, ao que parece, há uma tentativa de (re)construção identitária balizada por uma identificação racial que tem, por sua vez, como elemento fundante o cabelo crespo. Porém, conforme posto desde o título deste trabalho, até que ponto a identidade que emerge a partir de uma dimensão coletiva e por sua vez social, atualiza o processo de identificação pessoal (individual)? Ou seria o inverso?
II- Alguns lugares e grupos da pesquisa
A pesquisa foi iniciada em um ambiente virtual (Facebook) através de grupos formados por milhares de pessoas. Acompanho com mais frequência seis grupos nesse ambiente: Transição Capilar – o seu diário, Encrespa geral, Encrespando, Seu cabelo nossa identidade, Cachos alagoanos e A(r)mando o black. No entanto, diante de tanto material, postagem e movimentação, no atual momento de trabalho de campo restrinjo-me aos grupos Cachos Alagoanos, grupo do qual busca acessar pessoas para uma entrevista-conversa pessoalmente, o Encrespa Geral e o A(r)mando o Black, ainda assim, sempre procuro observar os demais grupos. O grupo “Transição capilar – o seu diário” foi um dos primeiros em que entrei e é o maior entre os mencionados – no período que o dado foi levantado em novembro de 2014 -com quase 15 mil pessoas (imagem 2). O “Encrespa Geral” é um evento ou como no próprio site informa, “…é um projeto de ação social que promove eventos que celebram a inspiração e valorização do uso do cabelo natural (cabelo crespo, cacheado, ondulado) como forma de autoconhecimento e reencontro das raízes, independente da idade, cor de pele, etnia ou tipo de textura capilar” foca na promoção de encontros (hoje realizados em todo o Brasil e em diversos países como Japão, Estados Unidos, Austrália, entre outros. Há um comitê internacional para focar a atuação e realização do projeto fora e dentro do Brasil), também atua e abarca as pessoas que se encontram em transição ou simplesmente são cacheadas e crespas. Os dois últimos grupos citados – Cachos Alagoanos e A(r)mando o Black – são de caráter regionais, assim como dezenas de outros. O primeiro atua e reúne pessoas em Alagoas (o grupo passou por reformulação de nome devido seu crescimento e extensão para além da capital, antes Cacheadas de Maceió); o segundo é voltado para Minas Gerais.
É impossível falar dos grupos de maneira homogênea. Apesar de todos terem como interesse e objetivo principal ajudar outras pessoas a passar pelo processo de transição capilar, a “assumirem” suas raízes e dizer não aos produtos alisantes, cada grupo têm suas especificidades. Uns mais preocupados com questões raciais e étnicas; outros focam em discussões sobre racismo e, indiretamente, gênero e feminismo; e ainda há os que são puramente estéticos, falam sobre beleza e como cuidar dos cabelos, o que não deixa de ser importante também. Esses são alguns grupos que tenho acompanhado na rede social escolhida, mas há também sites e blogs específicos. Restrinjo-me a citar 1 site e 1 blog: “Blogueiras Negras” e “Meninas Black Power”. Que problematizam questões da mulher negra em diversos temas.
III- O que é ser negra?
O que mais me chamou atenção nestes grupos? O discurso de centenas de pessoas, em sua maioria mulheres e jovens, sobre o “se assumir”, “assumir suas raízes”, “assumir sua identidade”. Então, a transição capilar é um processo de (re)construção identitária? Por que o cabelo crespo, natural, desperta tanta estranheza e rejeição? O cabelo crespo é um símbolo de resistência e distinção nas relações raciais? Ser negra/negro está condicionado a esses marcadores corporais? Inúmeros questionamentos se desdobraram, mas para sintetizar tantas questões, afinal, o que é ser negra?
No caso dos negros, o cabelo crespo é visto como um sinal diacrítico que imprime a marca da negritude no corpo. Dessa forma, podemos afirmar que a identidade negra, conquanto construção social, é materializada, corporificada. Nas múltiplas possibilidades de análise que o corpo negro nos oferece, o trato do cabelo é aquela que se apresenta como a síntese do complexo e fragmentado processo de construção da identidade negra. (GOMES, 2008, p. 25)
A importância da compreensão simbólica, assim como a manipulação dos elementos corporais, como o cabelo, segundo Gomes (2008), nos permite trilhar uma via para entender a identidade negra na sociedade. Na concepção desse trabalho tal pressuposto está condizente com as experiências acompanhadas.
É imprescindível a necessidade de trabalhos que busquem se debruçar sobre o tema de identidade negra a partir dos atributos físicos historicamente hostilizados, tidos como feio, fora do padrão. A aparência é um elemento fundante nessa pesquisa para entender a relação entre cabelo, identidade, raça e gênero e como todas essas categorias se articulam em torno do corpo.
No mundo branco, o homem de cor encontra dificuldades na elaboração de seu esquema corporal. O conhecimento do corpo é unicamente uma atividade de negação. É um conhecimento em terceira pessoa. Em torno do corpo reina uma atmosfera densa de incertezas. (FANON, 2008, p. 104)
As incertezas que Fanon menciona é o palco onde se estrela uma visão de que ser negra é ser feia. Nessa equação, a resultante cabe nas inúmeras tentativas de ser outro através de mudanças corporais.
A pesquisa encontra-se na etapa de trabalho de campo. Muitos de alguns questionamentos expostos nesse breve texto ainda não têm resposta, se é que terão ao final da pesquisa. O que saliento é que o tema a cada nova entrevista, conversa, observação virtual se reinventa, impõe novas questões e inquietações que tangem a subjetividade da pesquisadora e, às vezes, escapam de teorias apreendidas. Não resta dúvida que há muito que investigar e isso é só o início.
CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Identidade, etnia e estrutura social. São Paulo, 1976.
_________. Os (des)caminhos da identidade. In.: Revista Brasileira de Ciências Sociais vol 15, n. 42 Fevereiro 2000.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
GOMES, Larisse Louise Pontes. Entre Big Chops e Black Powers: Identidade, Raça e Subjetividade em/na “Transição”. Artigo de conclusão de especialização em Antropologia na Universidade Federal de Alagoas e Museu Théo Brandão de Antropologia e Folclore. 2014
GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p. 19-34.
MARQUES, João Filipe. O estilhaçar do espelho. Da Raça enquanto princípio de compreensão do social a uma compreensão sociológica do racismo. Ethnologia:
Racismo e Xenofobia. Ethnologia, 1995.
TURNER, Victor W. O processo ritual – estrutura e antiestrutura. Petrópolis-RJ, Vozes, 2011.
Texto extraído do Projeto de Dissertação de Mestrado a ser defendida no PPGAS/UFSC sob orientação da profa. Ilka Boaventura Leite.
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