Esmael Alves de Oliveira – FCH/UFGD, pesquisador do NUER
Esmael Alves de Oliveira – FCH/UFGD, pesquisador do NUER
O campo do que se convencionou chamar de antropologia do cinema tem se caracterizado como um espaço privilegiado de reflexão no interior da Antropologia, para refletir sobre os limites e possibilidades de utilização de imagens cinematográficas como recurso analítico-metodológico. No que diz respeito especificamente ao campo da antropologia brasileira, diversos autores têm apontado para a possibilidade da utilização de filmes como objeto de reflexão antropológica (HIKIJI, 1998; MALUF, 2002; ALVES e SAMAIN, 2004). Seguindo essas reflexões e situando este trabalho nesse campo de estudos, proponho o desafio de pensar a problemática do HIV/Aids nas lentes do cinema moçambicano, a partir da produção cinematográfica da cineasta moçambicana Isabel Noronha. Assim, minha intenção é examinar, numa perspectiva antropológica, o cinema como produtor de sentidos.
Meu contato com o trabalho de Isabel Noronha se deu ainda no Brasil em 2011. Desde 2009, vinha sendo desenvolvido um projeto intitulado “Novas dinâmicas familiares – HIV/Aids; estudos comparados Brasil e Moçambique”, no Núcleo de Estudos Identidades e Relações Interéticas (NUER). Esse projeto, coordenado pela antropóloga Ilka Boaventura Leite, da Universidade Federal de Santa Catarina, teve como objetivo analisar os impactos da pandemia do HIV/Aids, no contexto moçambicano, a partir do trabalho fílmico (um documentário) de Isabel Noronha. Tive acesso a esse documentário, intitulado Trilogia das Novas Famílias, em 2011, no contexto de minha pesquisa de doutorado. A análise do material e o posterior desenvolvimento do trabalho de campo em Maputo/Moçambique, me conduziram a questões e aspectos até então ignorados no início da pesquisa e aos poucos pude perceber a complexa teia discursiva e imagética em torno do HIV/Aids no contexto moçambicano. Seria o cinema o lócus privilegiado dessa discursividade? Ou seria possível pensar também outras imagens e discursividades? Nesse sentido, foi fundamental o acesso que tive aos cartazes utilizados na campanhas realizadas pelo Ministério da Saúde de Moçambique (MISAU), a produção cinematográfica de alguns cineastas moçambicanos e o próprio discurso da população, o que me conduziu à uma noção de imagética moçambicana sobre o HIV/Aids. Por meio desta categoria, propus o desafio de pensar toda a tessitura discursiva em torno do modo como a epidemia é significada pelos moçambicanos e moçambicanas.
Cabe destacar que não é por acaso que a temática do HIV/Aids tem ganhado a atenção dos cineastas moçambicanos. Dados fornecidos pelo Instituto Nacional de Estatística de Moçambique – INE, sobre o último senso realizado no país em 2010, apontam para a importância de se pensar o impacto que a pandemia da Aids representa para aquele país. A pesquisa do INE revela a realidade dramática de um grande número de crianças infectadas pelos genitores e de órfãos deixados pela Aids. Tais aspectos são diretamente enfocados na obra de Isabel Noronha, sobretudo no citado trabalho “Trilogia das Novas Famílias” (2007). Assim, minha intenção neste artigo é apontar para o caráter significativo e simbólico das imagens produzidas por Isabel Noronha que, ao usar o recurso cinematográfico para retratar os “impactos” da doença no contexto cultural moçambicano, fornece pistas importantes para novas abordagens e compreensões antropológicas de fenômenos sociais contemporâneos.
Se, conforme os dados oficiais do INE, o HIV/Aids afeta 14% da população moçambicana, certamente não é uma questão a ser desconsiderada pelos cineastas moçambicanos em suas obras. Problemática, o HIV está vinculado a aspectos sócio-político-culturais complexos, e as obras cinematográficas às quais tive acesso, bem como os materiais de sensibilização utilizados pelo MISAU e o próprio discurso da população, também ajudam a compor a narrativa e o imaginário da doença no contexto moçambicano, contribuindo dessa forma para a construção ou manutenção de significados. Nesse sentido, o desafio de compreender a Aids a partir desta imagética aponta parauma complexa teia de significados em que o discurso biomédico é apenas um dos muitos aspectos.
Portanto, a imagética moçambicana, ao apresentar, por meio de diferentes imagens e discursos, um fenômeno tão pungente e atual em Moçambique, como a questão da Aids, nos coloca diante das novas possibilidades compreensivas de fenômenos sociais complexos, ao mesmo tempo que aponta para a necessidade de novas abordagens teórico-metodológicas e reflexões sobre novos métodos de pesquisa. Abordagens essas que não ignorem o caráter metafórico e significativo dos imaginários e práticas sociais (SONTAG, 2007; DURAND, 2002). Assim, ao trazer, por meio desta imagética, aspectos importantes do impacto do HIV/Aids na sociedade moçambicana, por meio de filmes, banners/cartazes, discursos e intervenções, somos provocados a pensar aspectos que ultrapassam em muito os sentidos medicalizantes da compreensão da epidemia de HIV/Aids. Nesse caso, desvela-se a dimensão fugaz e interpelativa de uma imagem, colocando-se como um importante texto cultural a ser compreendido e analisado pelo antropólogo.
ALVES, André; SAMAIN, Etienne. Os argonautas do mangue precedido de Balinese character (re)visitado. Campinas: Unicamp/ São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004.
DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. 3a ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
HIKIJI, Rose Satiko Gitirana. Imagem-Violência: Mímeses e reflexividade em alguns filmes recentes. 1998. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social), Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 1998.
MALUF, Sônia Weidner. Corporalidade e desejo: Tudo sobre minha mãe e o gênero na margem. Estudos Feministas, jan./2002. p.143-153.
OLIVEIRA, Esmael Alves de. Qualquer semelhança não é mera coincidência: Uma análise do HIV/Aids no cinema moçambicano. Tese de Doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis: PPGAS/UFSC, SC, 2014. 264 p.
SONTAG, Susan. “Doença e suas metáforas”. “Aids e suas metáforas”. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
Texto extraído da tese de doutorado, defendida no PPGAS ,UFSC, 2013 sob orientação da profa. Ilka Boaventura Leite
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